Espetáculo incial - "Não era carne, era pedra"

Olhando assim para o céu, ele parece sempre igual... Azul, limpo, puro... As nuvens nas mais diversas formas... Alguns pássaros voando... Ah! O mundo gira... O tempo passa... A vida continua... Um dia após outro... E eu? Eu sou apenas eu... Na minha essência, apenas humana... E ser humana é muito bom! Meu rosto queima com o vento, não tenho medo de altura, mas confesso que quando olho para baixo, um frio invade meu estômago. Nossa! Estou viva! Sempre penso isso quando estou aqui em cima. A sensação de liberdade e de euforia consome meu ser... Tão profundo quanto respirar... Necessário. Posso imaginar loucuras aqui em cima... Pular... Me jogar... Sentir a gravidade contra meu corpo... Sentir o sopro ofegante da morte! Ah! Nossa! Quase que mágico. Mas eu amo a vida! E viver é morrer todos os dias... Morte e vida sempre tão próximas. O perfume da cidade. A poluição não me incomoda, pelo contrario... Eu gosto... Que cheiro bom... Cheiro de vida... a humanidade camuflada entre cimentos e ferros, fumaça e carros... rsrsrs... Não tem nada mais prazeroso do que estar viva pra ver isso. Ainda que de olhos fechados... Posso imaginar toda a podridão dessa cidade... O sofrimento de milhares de pessoas nesse momento... O universo me sugou em apenas um trago... E por falar em trago... Já tem mais de uma hora que não fumo...
- Ana... Ana... Ana! Você tá me ouvindo? Ana... Dá pra você sair daí? Ana!
- Ai! Ai meu braço... Precisa me puxar?
- Ow! Desculpa! Só fiquei com medo... Olha onde você ta sentada Ana?
- Ai Bruno... Às vezes te acho careta! Libera geral cara! Vive os limites da vida.
- Aninha... O problemático aqui não sou eu... É você... Sua louca.
Ele me deu um abraço fraternal e doce. Eu sei... Eu sei... Que por vezes extrapolo... Mas como diz Cazuza: “faz parte do meu show”. E em matéria de show... Eu me garanto! Rsrsrsrs. Descemos pelo elevador... Estávamos no topo do prédio, 55° andar. O síndico me deixava subir até lá sempre... Moro do apartamento 333... No 25°. Posso dizer que os vizinhos são tranqüilos... ah! E alguns, é uma graça! Rsrsrs... O Bruninho é um deles... Meu melhor amigo... Careta, chato... Ta sempre me cobrando, mas fazer o que neh? Eu gosto! Do corredor eu já podia sentir o cheirinho do bolo de milho de minha mãe... e assim que ela me viu, logo me cobrou.
- Ana... Não quero que falte a aula de piano.
- Tá. Nossa que bolo gostoso!
- Você não toma jeito... Primeiro violão, depois flauta, e agora piano. Quanta coisa mais vai começar e não levar até o fim?
-oh mãezinha... Eu não tenho culpa... O violão dói meus dedos, a flauta... Não consigo soprar... Mas o piano... Hum... Estou adorando! Só que vou logo avisando que hoje não posso ir.
Levantei subitamente e fui para o quarto, antes que minha mãe prorrogasse ainda mais o sermão. Joguei-me na cama... Macia... Lençóis de algodão... Colchão que me abraça... Olhando para o teto negro como a noite... Pensei nele...  e senti um vazio... Como se existisse uma lacuna aberta entre minhas entranhas... Sensação de medo e pavor... Alcancei o telefone, digitei lentamente o número proibido... Apaguei... Não, não posso dar esse mole! Se controla Ana! Deixa-o ligar pra você! Rsrsrs... Eu sempre dou gargalhada quando faço isso...  Quer saber? Às vezes não entendo... Se amo, não posso demonstrar, porque se ele perceber que estou tão assim afim... Normalmente os homens caem fora. Que estranho e louco isso! Aí se desprezo se trato mau ou ignoro... Aí sim... Eles me procuram. Queria ser livre... Falar e pensar o que quiser o que vier a cabeça... Queria ser louca de verdade... Se eu fosse mesmo maluca eu ligaria agora...
“Tuuuuuhhh tuuhhhh tuhhhh ... este número encontra-se desligado ou fora da área de cobertura.”
  Droga... Quando tomo coragem... Já sei, vou ligar pro fixo... Aí se ele estiver em casa... Saberei.
Tuuhh... tuhh...
-Alô.
-Alô, gostaria de falar com o Maurício.
- Sou eu... Ana!
Nossa... Ele se lembra da minha voz? Oba! To bem! Rsrs.
- Então... É que... Eu só liguei pra...
- Quero te ver! Estou com saudade!
- Sim... Quer dizer... Não...
- Hã? Você não quer me ver Ana?
- Nuss... Não é isso... Rsrsrs...
- Ana... Hoje às 20 horas no café club, Ok?
- Ok.
Desliguei. Meu coração palpitava, talvez hoje fosse o dia certo pra jogar na loteria... Rsrsrsrs... Só sei que eu estarei lá... Pra ter o prazer de vê-lo novamente.
Nossa! Eu ia me esquecendo... Bruninho foi embora com meu caderno de desenhos. Hoje estou avoada... Completamente estranha, preciso respirar um pouco de fumaça... Vou sair... ir ao shopping? Ao cinema? A aula de piano? Não... Isso é pouco pra mim... Hoje quero mais que isso. Para o metro... Isso... Um bom lugar. Levantei, coloquei aquela calça jeans mais velha do meu guarda roupa, tênis, meias listradas, uma camiseta preta, minha preferida, ganhei do bruno quando ainda estudávamos no ensino médio. Peguei as chaves da moto... Minha mãe estava assistindo a novela da tarde... Saí de fininho... Quase que ganho outro sermão.
Cheguei ao metrô, meu banco estava livre, Ufa! Que bom... Sentei... Respirei fundo... Ai ai ai... Que lindo este lugar! Gente! Muita gente! Pessoas indo e vindo o tempo todo, umas falando ao celular, outras andando depressa e ainda aquelas que parecem perdidas. Eu fiz o que sempre faço, apanhei minha cadernetinha que comecei a anotar tudo o que eu via. Confesso que algumas anotações são bizarras. O ser humano e suas multifaces... Irônicos... Sensíveis... Malvados... Bons... Na verdade, acredito na mentira de sermos mais verdadeiros que nós mesmos... Hipócritas! Rsrsrs... E eu sempre me incluo nisso que digo. Eu adoro ser assim... Parece que o mundo não tem tempo pra mim... as vezes me deixa de lado... Me faz girar anti-horário... Vejam bem aquela mulher... Uma loira de aproximadamente 1,70, bonita, pele clara, olhos caramelos, sobretudo de couro, sapatos fechados e meias pretas, uma bolsa esporte que não combina nada nada com o figurino... o que será que ela está pensando agora... Ela passa a mão nos cabelos, abre e fecha a bolsa todo minuto... Olha pro celular como se tivesse aflita... Será que espera alguém? Está atrasada? Não sei... Pessoas... Apenas pessoas...
Ufa! Vou pra casa, não quero me atrasar pra ver o Maurício... Nossa, com que roupa vou? E por falar nisso estou precisando comprar umas coisinhas, mas é tão chato ficar andando de loja em loja procurando as coisas, se o mundo capitalista dependesse de mim pra ser feliz... Nossa! Ele seria eternamente triste. Hahaha... Mas voltando a falar do Maurício... Meu peito arde quando penso nele... E pensar que só o conheço a uma semana... Mas parece um ano... Bem que às vezes penso que as horas passam diferentes pra mim... O Bruno sempre me reprime, diz que preciso ser mais consciente, mais lenta... Acho graça quando ele grita: ”breca o freio Ana! Tira o pé do acelerador... você pode morrer na curva”! Sim... Às vezes eu penso isso que a vida vai me matar a qualquer hora... Só consigo viver as coisas a 300 km/h... Isso me assusta. E por falar em velocidade... Ana você está muito envenenada nessa moto...
Cheguei em casa... Minha mãe continua na TV, um vício pelo qual não tenho prazer... Odeio esses programas medíocres... pra viver hipocrisia... vivo a realidade...tomei banho... no guarda-roupa, um vazio.... sim... acho que a maioria das minhas roupas estavam sujas, o que me restou foi um shorts jeans e uma blusa preta... mas essa parecia decotada demais, não quero que Maurício me ache abusada... Quero que ele pense que sou uma garota ingênua... Homens gostam disso. Tity, afirma que os homens têm medo de mulheres auto-suficientes... rsrsrs... Aquela louca... Não sei como conseguiu pegar o Vitor... nuss, ele é muito lindo. No pé... Hum... Acho que essa sandália vermelha... É sexy... hahaha... Brincos, maquiagem... Batom? Não... Só um brilho pra realçar. Bolsa? Hum! Acho que essa aqui, nossa... Meu sapateiro está bagunçado também. Rsrsrs... Pronto! Estou pronta... Faltam 20 minutos pras 20 horas, vou indo... Não quero chegar atrasada, mas também não quero chegar antes dele, não posso demonstrar que estou ansiosa. Abri a porta do Ap. e dei de cara com Bruno:
-Oi garoto!
-Aonde a senhorita vai? Vim trazer seu caderno.
-Vou ao café, você pode deixar lá no meu quarto?
-Vai com quem, heim Ana?
-Tem horas que penso que você é meu pai, sabia? Nada demais só vou tomar um café com o Maurício.
-Hahaha... Aquele que você conheceu no clube?
- sim, por quê?
-Ana, dizem que ele não presta, é um galinha!
-Pára Bruno, já vem por coisas na minha cabeça... Eu não quero namorar ele... Só uns beijinhos... Seu bobo!
- Ah! Nem vou perder mais meu tempo com você Ana! Vá!
-Beijo gatinho e até amanhã.
Beijei Bruno, senti que ele me abraçou forte, eu sabia que ele não gostava desses meus encontros improváveis, mas eu não ligo, a vida é assim neh, feita pra se viver... Um dia, estamos bem e no outro mau, mas bom é saber que tudo passa e que em breve estaremos bem de novo... Os sofrimentos são basicamente os mesmo... Sempre... Só muda os atores, mas a peça... Essa se repete todos os dias... A vida é um grande palco... Eu sou a atriz principal... E hoje Maurício vai saber o quanto é bom estar no meu show. Rsrsrsrs.
Avistei a mesa... Lá estava ele... Camiseta básica branca, calça jeans, tênis azul, cabelos pretos e arrepiados... Mas tá na moda neh... Com os braços cruzados em cima da mesa, parecia tranqüilo, esperava... Me esperava! Sim... Aquele homem estava ali por mim... Fui me aproximando e fui surpreendida por um olhar fatal... Um sorriso conquistador... Mauricio... Com isso você dificulta meu raciocínio... Rsrsrsrs.
-Olá Ana!
-Oi, desculpa o atraso.
-Imagina, chegou bem na hora.
Ele levantou, e com o mesmo sorriso abrasador me abraçou e me deu um beijinho na bochecha esquerda, sua barba roçou lentamente no meu rosto e um arrepio tomou conta do meu corpo... Eu sorri gentilmente e sentei. Barba... Eu amo homens de barba... Nossa como dei sorte! Hahaha.
-Ana, o que vai beber?
-Hum... Acho que um café com chantili.
- Então, moça dois... Com chantili.
A garçonete saiu, mas antes eu bem que vi ela dando uma secada no meu homem.
- E aí Ana... O que anda fazendo por esses dias?
- ah... Estou tranqüila... De férias da faculdade... Aí fico inventando coisas pra fazer. E você?
- Eu estou bem cheio de trabalho... Meu pai viajou e fiquei com um monte de coisas da empresa pra resolver.
- Poxa! Que chato...
- Até que eu gosto... Trabalhar é bom. Mas me diga, faz faculdade de que mesmo?
-faço psicologia.
- Nossa que legal... Acho que estou precisando de uma consulta com a psicóloga mais linda que conheço.
Ele segurou minha mão... Que rápido... Que decidido... Gostei... Mantive a mão embaixo da dele.
- Claro, talvez eu não resolva todos seus problemas, mas boa parte deles.
Fui decidida também, me demonstrei segura de si... Mas sem perder o olhar frágil e a voz doce... Ele lançou mais um de seus sorrisos, inclinou o corpo pra frente, ficando bem próximo a mim, me olhou nos olhos, passou a mão levemente em meu rosto e disse:
-Ana, você é meu único problema no momento.
Ai ai ai... Quase morri com essa frase... Será que sou eu mesmo... Ana? Rsrsrsrsrs... Mantive a calma... Não queria que ele visse o quanto estava empolgada. Apenas sorri de mancinho e respondi.
- Não costumo ser problema, sou sempre solução.
Ele puxou minha cadeira pra mais perto da dele, e naquele segundo... Meu coração palpitou mais forte... Colocou novamente a mão no meu rosto deslizando para minha nuca... Senti meus olhos fechando lentamente e meus lábios sendo molhados pela boca dele. No café... Com muita gente por perto... Depois de apenas meia dúzia de frases trocadas eu tinha me entregado aquele beijo... Não acredito... Fui fácil demais... Mas agora não quero pensar nisso.
-Você beija muito bem. - disse Maurício.
- Ah é? Então me beija mais.
Muitos beijos... Tomamos o café... Beijamos mais... Ao redor muitas mesas cheias, acho que as pessoas pensavam que estávamos loucos... Afinal ali era um local de “família”... Eu, não nos classifico como loucos... E sim como alma gêmea... Que beijo mais perfeito... Depois fomos pro estacionamento, tentávamos nos despedir... Mas soltar aquela boca era quase que uma tortura. Entramos no carro dele, uma musica ambiente... Para o momento ele colocou Capital Inicial... Eu me amarro nas músicas dos caras... Então... Tudo ficou ainda mais perfeito.
- Ana... Tenho que ir ao banheiro... Me espera aqui.
- sim... Tudo bem.
Ele saiu do carro, eu fiquei lá... Sorrindo a toa... Nossa como achei um cara desses... Ana? Você é foda! Xiii... Telefone tocando... Não é o meu... Ah sim... É do Maurício... Mensagem pra ele... Nossa que vontade de ler... Mas isso é feio... Ah quem liga... hahaha.
“Amor, não demora, eu já estou na sua casa”
Hum... Bem que Bruno me disse que ele é galinha... Alice? Hum... Não sei quem é... Ele deve tá pegando essa também... Mas vou ficar no páreo... Não tenho medo da concorrência. Vou apagar a mensagem... E prender ele um tempo mais. Sim, sim... Vai ficar esperando, Alice!
-Demorei?
-Nada...
Entrou no carro e nos beijávamos como loucos... Intensos e calorosos me tiravam o fôlego... O telefone dele começou a tocar... Ele não atendeu... Tocou outra vez... E eu logo imaginei que poderia ser Alice... Então beijava com mais prazer... Não queria deixá-lo atender. Mas aquela porra, insistia... Ele atendeu.
“-Oi amor... já estou indo... não... vim no mercado... claro amor... levo sim... qual sabor? Tá.Beijo!”
- Desculpa Ana, mas tive que atender.
Fiquei perplexa... Eu tinha mesmo ouvido isso, ou era coisas na minha cabeça? Quanta frieza... O que eu faço?
- Ana...
A voz dele me chamando, eu imóvel... Precisava reagir, não podia sair por baixo nessa situação, mostrar que eu me importo é humilhação.
-sim... Tudo bem.
-Você ficou chateada? Era Alice, minha namorada... Não te disse nada Ana, porque não sei se você se importa com isso.
Rsrsrs... Ele só pode estar de brincadeira... Se me importo... Imagina... Aff! O que ele ta pensando que sou? Porra! Mas não vou dizer nada.
- Não... Por que me importaria?
- Foi o que pensei.
Ele sorriu e me beijou novamente, agora parecia que em sua boca tinha fel... Me senti um lixo... Uma qualquer... Mas beijei assim mesmo... Fingi que nada aconteceu e disse:
-hum... Se você não estivesse com pressa... Poderíamos ir pra outro lugar.
- Tipo... Mais a vontade?
Nossa... Que estou fazendo... Ana? O cara acabou de atender a namorada na sua frente... Acha que você é qualquer uma... E porque age como se realmente fosse?
- sim...
- Não posso hoje querida... Mas te ligo em breve, pode ser?
- sim. Claro... Estarei esperando!
Saí do carro, coloquei o capacete, vi o carro ir embora... Ele indo pros braços da outra... Na verdade ele estava indo pros braços da namorada, eu que era a outra, da mais baixa qualidade... Liguei o motor... Acelerei na velocidade do meu coração... Uma lagrima caiu, descia pela face... Usada... Apenas usada... Sim... Por que, às vezes, permito essas coisas bizarras acontecer comigo? Você é mesmo uma idiota Ana.